‘Caminhos da sonegação’: advogados relatam a mecânica que alguns maus empresários praticam para sonegar no mercado de combustíveis
Publicado em 16/12/2020 por RedaçãoNa minissérie documental “Nova York contra a Máfia” (Netflix), o ex-mafioso Michael Franzese relata, com assustadora tranquilidade, como ganhou muito, mas muito dinheiro ao sonegar impostos na venda de combustíveis nos anos 80. A seguir, um trecho de sua fala retrata parte da mecânica dos crimes cometidos:
“O esquema de gasolina foi o maior que já tive. Havia um cara com uma operação em Long Island. Ele veio a mim e disse que poderíamos sonegar impostos sobre a venda do combustível. Ele pôs na mesa uma caixa, abriu e disse: ‘este é o lucro da primeira semana: US$ 320 mil.’ Dali em diante, fiz essa operação render entre US$ 8 e US$ 10 milhões por semana. Vendíamos combustível para postos filiados e não filiados, todo mundo (…) o FBI não conseguia descobrir. Foi a era de ouro da Máfia”
Essa prática danosa da máfia contra os cofres públicos e o mercado regular de Nova York encontra, nos dias atuais, alguns paralelos no Brasil. A sonegação de impostos chega a valores assustadores. Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), apenas no setor de combustíveis são desviados, anualmente, R$ 7,2 bilhões. Em ação, um vasto repertório de condutas criminosas para burlar o pagamento dos impostos.
O Combustível Legal preparou uma série de três entrevistas intitulada “Caminhos da Sonegação”, em que os advogados Júlio Janolio e Octavio da Veiga Alves, do escritório Vinhas e Redenschi Advogados, levantam o incrível roteiro de ações que os sonegadores utilizam para lesar os cofres públicos e prejudicar fortemente o mercado regular e ético de combustíveis. Confira a seguir:
Combustível Legal: O setor de combustíveis é fortemente impactado pela sonegação de impostos. Quais são os principais motivos para que isso ocorra?
Julio Janolio e Octávio Alves: Apesar da fiscalização realizada pelos estados e pela União, a legislação ainda não fornece, de forma clara, instrumentos jurídicos sólidos para se evitar, de maneira preventiva, que contribuintes de má-fé atuem no setor, assim como lidar de forma repressiva contra esse tipo de prática irregular. De alguns anos para cá, essa situação melhorou com a edição de leis nos estados prevendo a figura do devedor contumaz e as medidas administrativas fiscais para coibir a atuação desses contribuintes, porém, ainda falta a aprovação da legislação no âmbito federal – PL 1.646/19 e PL 284/2017.
Combustível Legal: Vocês podem enumerar os principais artifícios utilizados nesta prática?
Julio Janolio e Octávio Alves: Acreditamos que os principais artifícios que os contribuintes de má-fé utilizam são a inadimplência reiterada e contumaz dos tributos devidos, sobretudo o ICMS e o PIS/COFINS, mediante a adoção de procedimento de se declarar devedor ao fisco e não pagar os tributos. Soma-se a isso a utilização de regimes especiais de importação por meio de Estados em que a mercadoria sequer chega a transitar, a venda de combustíveis sem nota fiscal e sem declarar o imposto, e a venda interestadual de combustíveis sem o pagamento da diferença do tributo na passagem de um Estado para o outro.
Combustível Legal: Dentro dos regimes especiais de importação está o uso dos chamados títulos precatórios. E uma das ações desses grupos se deu com a utilização de precatórios para pagar dívidas tributárias. Quem autorizou essa prática?
Julio Janolio e Octávio Alves: Entre 2010 e 2011, o Estado do Rio de Janeiro permitiu a compensação de débitos tributários com precatórios por meio das Leis nº 5.647/2010 e 6.136/2011. Notícias na mídia indicam que esse programa reduziu fortemente a quantidade de precatórios pendentes de pagamento no estado. Desde então, essa medida não é mais autorizada. O mesmo ocorreu no Estado de Alagoas, até 2017, que permitia a importação de determinados combustíveis com o pagamento do imposto por meio de precatórios estaduais.
Combustível Legal: Como se utilizava os precatórios? Porque o uso de precatórios para honrar compromissos tributários não é comum. Nestes casos específicos fica claro o beneficio para alguns grupos econômicos que comprovadamente se constituem em devedores contumazes…
Julio Janolio e Octávio Alves: Os precatórios eram comprados com deságio de titulares que detinham créditos originados de ações judiciais transitadas em julgado contra o Estado, e o título poderia ser compensado com o ICMS devido na importação dos combustíveis, no caso de Alagoas.
Combustível Legal: Na época, se criou um mercado de compra de precatórios?
Julio Janolio e Octávio Alves: Sim. O mercado de precatórios, na realidade, sempre existiu. Porém, a partir do momento que se permite compensar precatórios com imposto devido na importação de produtos essenciais (combustíveis), o mercado foi aquecido.
Combustível Legal: Mas se pagava por esses precatórios o valor real que o estado tinha utilizado para saldar dívidas ou indenizações?
Julio Janolio e Octávio Alves: Não, os precatórios, usualmente, são comprados com deságio.
Combustível Legal: Essa prática foi muito danosa para o mercado regular?
Julio Janolio e Octávio Alves: Esse tipo de estratégia de declaração de débito e apresentação de pedido de compensação por precatório, quando efetuada por contribuintes do setor de combustíveis, acaba prejudicando todo o mercado, pois os valores não recolhidos de imposto e a diferença do valor de face do precatório, e seu custo de aquisição com forte deságio, acabam se tornando possível margem para redução artificial de preços, caracterizando uma estratégia ilegal.
Combustível Legal: Mas algumas empresas ainda insistem neste artifício para não pagar impostos?
Julio Janolio e Octávio Alves: Mesmo sem a autorização legal, há empresas que até hoje pedem a compensação por essa modalidade nas vias administrativa e judicial, porém, sem sucesso, pois não há previsão legal e a jurisprudência impede esse tipo de compensação.
Combustível Legal: Ainda é possível se utilizar desse artificio, ou os estados fecharam essa brecha?
Julio Janolio e Octávio Alves: Algumas janelas foram abertas no passado. Atualmente, não há esse tipo de autorização na legislação.
Combustível Legal: Mas os sonegadores se deram por vencidos, ou continuam brigando na justiça?
Julio Janolio e Octávio Alves: Houve discussão judicial de algumas empresas, em Alagoas, para postergar o benefício de compensação com precatórios até o final de 2017, tendo em vista jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de que a redução de um benefício fiscal implica em aumento indireto de tributo, devendo, então, ser respeitado os princípios da anterioridade anual e nonagesimal previstos na Constituição.
Combustível Legal: Para fugir dos impostos, teve empresa que abriu filial importadora de combustíveis bem longe do Rio ou São Paulo?
Julio Janolio e Octávio Alves: É verdade. Há importadores de combustíveis que firmam regimes especiais com incentivos tributários junto a governos estaduais para importar combustíveis por meio desses estados, que normalmente possuem baixa arrecadação de ICMS. Porém, os combustíveis nunca chegam a transitar pelos estados, sendo descarregados na região Sudeste.
Combustível Legal: Como se dava a internação desse produto? Ele não chegava a Rondônia, por exemplo, por meio de navio?
Julio Janolio e Octávio Alves: O produto é descarregado em São Paulo, ou no Rio de Janeiro, com a documentação do estado em que é firmado o regime especial. Com a tributação incentivada do regime especial, se permite pagar muito menos imposto do que se o produto fosse diretamente importado por São Paulo, ou Rio de Janeiro. Após o descarregamento, ele é destinado a estabelecimento na própria região Sudeste, e não para o estado onde a documentação da importação foi formalizada.
Combustível Legal: No caso do Amapá, a mesma lógica irregular de importação se repete?
Julio Janolio e Octávio Alves: No caso de regimes especiais firmados junto ao Estado do Amapá, por exemplo, já verificamos diversas situações em que o produto foi descarregado no Estado de São Paulo e destinado ao Rio de Janeiro, o que causa também um contencioso tributário com esses estados porque o ICMS deveria ter sido recolhido ao estado de destino da mercadoria.
Combustível Legal: E conseguiam competir com o mercado regular?
Julio Janolio e Octávio Alves: Como o produto importado por esses regimes especiais de Estados com baixa arrecadação possui menor tributação do que a incidente sobre a venda de combustíveis pela Petrobras, ou por quem importa combustíveis diretamente aos Estados em que a mercadoria será destinada sem qualquer benesse especial, os importadores detentores desses incentivos competem de igual para igual no mercado de combustíveis, porém, em condição bastante privilegiada por redução de custo tributário (ICMS), causando desequilíbrio concorrencial.
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