Para o STF, se apropriar de forma contumaz do ICMS ao não repassar ao Estado é crime de apropriação indébita. Confira o artigo e entenda!
Publicado em 21/01/2021 por RedaçãoSe apropriar do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias – ICMS e não repassar ao Estado de forma contumaz é crime de apropriação indébita. A decisão final sobre essa questão foi do Pleno do Superior Tribunal Federal – STF. Com a decisão da Suprema Corte, foi fixada a seguinte tese: “O contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990.”A lei indicada na tese define crimes contra a ordem tributária, econômica, e contra as relações de consumo.
Em artigo exclusivo ao Instituto Combustível Legal, os advogados JulioJanolio e Octávio Alves, do escritório Vinhas e Redenschi Advogados, analisam essa decisão do STF e suas repercussões no setor de combustíveis. Confira a seguir.
Por Julio Janolio e Octávio Alves
O acórdão do Recurso Ordinário em Habeas Corpus(“RHC”) nº 163.334, do Pleno do STF, materializa o julgamento que definiu como crime o não pagamento contumaz do ICMS. Cabe destacar logo de início que a decisão final contém expressamente, na página 18 do voto do Relator Ministro Luís Roberto Barroso, o exemplo trazido pelo Sindicato Nacional das Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes –Sindicom, aos autos, demonstrando o grave prejuízo que o devedor contumaz traz à livre concorrência do setor de combustíveis:
“54. Outro bom exemplo é trazido pelo Sindicom. De acordo com o sindicato de distribuidoras de combustíveis, o ICMS representa 31% do preço da gasolina. O contribuinte que deixa sistematicamente de recolher o ICMS pode se dar ao luxo de praticar uma margem de lucro muito inferior e quebrar a concorrência. A título exemplificativo, na hipótese de combustível vendido ao consumidor final a R$ 4,00 o litro, aproximadamente R$ 1,20 representam o valor do ICMS, enquanto que aproximadamente R$ 0,40 representa a margem de lucro das distribuidoras e dos revendedores somadas. O devedor contumaz de ICMS consegue, assim, vender o combustível a 3,50, com a consequência de não apenas obter um lucro maior, mas quebrar a concorrência.”
Em uma segunda passagem do acórdão, o Ministro Luiz Fux traz uma notícia contendo dados fornecidos pela “Plural” (atual Sindicom) para a Reuters – página 113 do acórdão:
O voto do Relator Ministro Luís Roberto Barroso estabelece uma diferença entre o devedor eventual do ICMS, que não consegue adimplir à dívida do imposto porque está em dificuldades financeiras, ou eventualmente deixa de pagar o imposto em algum período, para aquele contribuinte que estruturalmente, e como estratégia de mercado, age deliberada e dolosamente ao não pagar o ICMS declarado ao Estado, utilizando como subterfúgio indevido uma redução artificial do preço de venda de sua mercadoria, praticando concorrência predatória e desleal.
A contumácia no não pagamento do imposto é a peça–chave para a caracterização do crime de apropriação indébita na hipótese fixada pelo STF.
Nesse sentido, o voto do Ministro Relator traz os critérios abaixo transcritos, que, em conjunto ou separadamente, a depender de cada caso concreto, podem ser verificados pelo juiz para identificar como contumaz a atuação do contribuinte devedor do ICMS, de modo a se caracterizar o crime de apropriação indébita.
“63. É preciso, portanto, que se constate que a inadimplência do devedor é reiterada, sistemática, contumaz, verdadeiro modelo negocial do empresário, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades. Trata-se de elemento de valoração global do fato, a ser apurado pelo juiz em cada processo concreto. Além da própria conduta atual de inadimplência reiterada, também deve-se levar em consideração o histórico de regularidade de recolhimentos tributários do agente, apesar de episódios de não recolhimentos específicos, justificados por fatores determinados.”
Como se verifica, a dívida de ICMS não pode ser um mero episódio, mas sim sua reiteração em diversos períodos, revelando um modelo de negócios estruturado com vista a praticar concorrência desleal e enriquecer o empresário às custas do não pagamento doloso do imposto.
Segundo o acórdão, o dolo da apropriação do imposto deve ser verificado na instrução criminal (produção de provas), podendo ser caracterizado em diversas hipóteses, indicadas de forma exemplificativa (conforme indica ao final desse trecho abaixo o Ministro Relator com a expressão “etc.”). Desse modo, os Estados/Ministério Público poderão buscar as evidências que entenderem necessárias para comprovar a contumácia do agente.
“66. O dolo de apropriação deve ser apurado na instrução criminal, a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas” no quadro societário, o encerramento irregular das suas atividades, o valor dos débitos inscritos em dívida ativa superior ao capital social integralizado etc. Tais circunstâncias são meramente exemplificativas e devem ser cotejadas com as provas existentes no caso concreto para fins de aferição do elemento subjetivo do tipo.”
Especificamente no setor de combustíveis, fica claro o enquadramento do empresário que atua nesse modelo irregular e estruturado de negócios. Nesse importante setor da economia, o ICMS sobre os produtos derivados do petróleo deve ser recolhido pela refinaria e pelo importador, enquanto o ICMS sobre o etanol é recolhido pelas usinas e pelas distribuidoras. Segundo levantamento feito pela Fecombustíveis (https://www.fecombustiveis.org.br/tributacao), o ICMS sobre a gasolina varia de 25% a 34% do preço total a depender do estado em que é comercializado, enquanto para o óleo diesel, essa proporção é de 12% a 25%; e para o etanol, de 25% a 32%.
A elevada representação do ICMS no preço dos combustíveis é fator de enorme relevância para identificar a importância do regular pagamento do imposto para a livre concorrência e o equilíbrio de mercado no setor. Como bem destacado no voto do Ministro Relator Luís Roberto Barroso, o contribuinte que de forma contumaz não recolhe aos cofres públicos o ICMS declarado pode atuar com concorrência predatória e desleal, incorrendo, assim, na principal característica da contumácia definida no acórdão para identificar a ocorrência do crime de apropriação indébita.
No setor de combustíveis, especialmente, o ICMS não pago reiteradamente sobre as vendas de combustíveis é comumente utilizado como mecanismoirregular para reduzir artificialmente o preço do produto, o que se enquadra nos critérios definidos no voto do Relator de lesar a concorrência e vender produtos abaixo do preço de custo.
Observamos que outras práticas voltados a infrações administrativas/societárias, que também ocorrem no setor de combustíveis, especialmente no caso de distribuidoras e varejistas que atuam de forma irregular, podem ser consideradas para a caracterização do devedor contumaz, como, por exemplo: “a utilização de ‘laranjas’ no quadro societário” e “o encerramento irregular das suas atividades”. Essas duas práticas indevidas ocorrem infelizmente de forma reiterada para os agentes se esquivarem de cancelamentos de inscrições e da imposição de penalidades pelos órgãos fiscais e regulatórios, de modo a seguirem atuando de forma indevida no mercado. O julgamento do RHC 163.334, portanto, confere ao Estado mais um instrumento de coibição dessas práticas de forma validada pelo STF, contribuindo para um melhor equilíbrio de mercado.
Portanto, ao nosso entender, o voto está estruturado em diferenciar o devedor eventual do devedor contumaz. Para caracterizar o crime de apropriação indébita, o empresário deve atuar com contumácia no não pagamento do imposto, revelando modelo de negócio que toma o não pagamento do ICMS como estrutura importante do sucesso do empreendimento.
Tomando a realidade do setor de combustíveis, que lida com produto essencial à população e altamente tributado, o não pagamento do imposto é catastrófico, tanto para a concorrência, como para o Estado. É sabido que os combustíveis são os produtos que trazem a maior arrecadação de ICMS para todos os estados, sendo essencial, portanto, para a persecução das políticas públicas, o regular pagamento do imposto declarado sobre as vendas de combustíveis (Folha de S. Paulo, 22/10/2019: “No setor de combustíveis, o campeão em arrecadação de ICMS do país, os impostos correspondem em média a 44% do preço da gasolina vendida ao consumidor. O setor vem arrecadando R$ 150 bilhões ao ano. Em 2019, o recolhimento de impostos já alcançou quase R$ 119 bilhões.” – link: http://estudio.folha.uol.com.br/plural-combustivel-legal/2019/10/1988477-fraudes-e-tributacao-complexa-elevam-precos-dos-combustiveis.shtml).
Nesse aspecto,na seara exclusivamente tributária, mas que envolve a mesma questão de fundo, é sabido que a jurisprudência clássica do STF veda, de uma forma geral, a interdição de estabelecimentos pelo fisco como medida indireta de exigência de tributos, tendo esse entendimento sido motivo para a edição das Súmulas STF nºs 70, 323 e 547.
É interessante notar que as Súmulas nºs 70 e 323 foram aprovadas pelo STF em 13/12/1963, e a Súmula nº 547 foi aprovada em 03/12/1969.
Muito embora as Súmulas sejam claras sobre a impossibilidade de o fisco, de um modo geral, prejudicar a atividade do contribuinte de algum modo por conta do não pagamento de tributos, o STF atualmente não toma esses preceitos de forma indistinta para todos os casos concretos. A jurisprudência do Plenário evoluiu, justamente na linha da estrutura do voto do Ministro Relator do RHC 163.334, Luís Roberto Barroso, para diferenciar o devedor eventual de imposto, que não pode ter suas atividades prejudicadas pelo fisco, ou mesmo ser criminalmente imputado, para o devedor contumaz. Para este segundo, o Pleno do STF tem validado formas repressivas de atuação do Estado, seja na esfera administrativa, seja na esfera criminal.
Nesse sentido, podemos citar o Recurso Extraordinário nº 550.769 e a Suspensão de Tutela Provisória nº 102, julgados respectivamente em 22/05/2013 e 27/03/2020. Esses precedentes firmados pelo Pleno do STF validam a cassação de inscrições fiscais de devedores contumazes, sendo o primeiro do setor tabagista e o segundo do setor de combustíveis. Enquanto o julgamento do RE nº 550.769 valida o impedimento absoluto do exercício da atividade pela empresa, confirmando a constitucionalidade de dispositivo legal neste sentido, o julgamento da STP nº 102 validou ao Estado de São Paulo cassar a inscrição estadual de substituto tributário paulista de empresa do setor de combustíveis que declarava e não pagava o imposto quando vendia o produto do Rio de Janeiro a clientes estabelecidos no Estado de São Paulo, modificando, assim, a forma de apuração e o momento de pagamento do imposto, de modo a evitar a continuidade das graves lesões aos cofres públicos.
Em realidade, o Supremo Tribunal Federal já definiu no Tema nº 363 da Repercussão Geral (RE nº 627.543, Rel. Min. Dias Toffoli) que é lícito ao Estado (lato sensu) não enquadrar contribuinte em previsão de regime tributário mais benéfico caso seja devedor de tributos. O Superior Tribunal de Justiça ratifica esse entendimento em sua jurisprudência (STJ, Recurso em Mandado de Segurança nº 25.364/SE, 1ª Turma, Rel. Min. Denise Arruda, julgado em 18/03/2008, DJe 30/04/2008).
Nesse contexto que se insere o julgamento do RHC 163.334, como um ponto de convergência entre a jurisprudência moderna do Supremo Tribunal Federal sobre o devedor contumaz e a validação de medidas mais repressivas de atuação por parte do Estado contra contribuintes de má-fé que prejudicam a economia e a sociedade como um todo.
Apesar de o caso ainda não ter sido definitivamente julgado porque foram opostos embargos de declaração, o Supremo já definiu a tese sobre ser crime cobrar o imposto do adquirente ou reduzir artificialmente o preço da mercadoria mediante o não pagamento contumaz do ICMS ao Estado.